Não se pense que javé se lançou à obra da Criação com os próprios braços. Deitado eternamente em berço esplêndido incumbiu serafins e querubins de executarem o projeto América Latina. Animados, os anjos puseram mãos à obra, convencidos de que da prancheta do Grande Arquiteto resultaria o melhor.
Lá pelas tantas os serafins estranharam pequenos erros de cálculo. Ora, não fora tudo previsto pela Infinita Sabedoria? Perante desajustes evidentes, alguns anjos relaxaram no trabalho: aos olhos dos arcanjos, pareceu boicote ao projeto.
Bom patrão, Javé dispôs-se a dialogar com os relapsos:
- Por que têm faltado ao trabalho?
- Porque o projeto não é justo respondeu o líder dos serafins.
- Como não é justo? Espantou-se o Sumamente Justo.
- Veja Senhor – argumentou o anjo, o México é proporcional à Argentina: a Nicarágua à Bolívia: o Panamá ao Uruguai. Mas há um país demasiado grande na América do Sul. Por que não dividi-lo em cinco ou seis, e evitar no futuro queixas de que o Senhor privilegiou o Brasil?
Irritado por duvidarem de sua imparcialidade, Javé reagiu:
- Sei muito bem o que faço. E ordenou: Prossigam a obra.
Dias depois, Javé viu a sua Infinita Paciência abalada pela notícia de que os querubins, mais politizados, organizados no sindicato angélico, haviam entrado em greve. Sem temer afrontas, compareceu à assembléia da categoria:
- Por todos os santos, qual é a reclamação agora?
- Os serafins têm razão, Senhor – explicou o líder. – O projeto é realmente injusto. Não podemos prossegui-lo.
- Ora, o que há de errado em criar países com dimensões distintas? Retrucou Javé. – A um continente quadriculado, prefiro a diversidade, como fiz com as espécies de vida.
- Não se trata de proporcionalidade territorial – disse o anjo. – Preocupam-nos os fenômenos naturais destinados a cada país. – Veja Senhor: há desertos no Chile, no Peru e no México; no Brasil, nenhum. Vulcões na Nicarágua e furacões em Cuba: no Brasil, nenhum. Terremotos no Peru, na Guatemala, na Nicarágua, em El Salvador e no México; no Brasil, nenhum. Neve e geleiras em toda a região andina; no Brasil, apenas um neviscar, três noites por ano em São Joaquim (SC), para atrair turistas.
Outro completou:
- Nós da direção sindical, desconfiamos que, após o fracasso do Èden, o Senhor nutre a intenção de reeditar o Paraíso no Brasil.
- Valha-me Deus! - Exclamou Javé. - Expliquem melhor.
- O Èden não faliu por causa de uma maldita árvore? Entre os países, o Brasil é dos raros com nome de vegetal. Dadas as suas dimensões continentais, a ausência de qualquer catástrofe natural e os imensos recursos a ele reservados, concluímos que o Senhor pretende reinaugurar ali o Paraíso, não é verdade? Ou como explicar o projeto de conferir ao Brasil um excelente clima tropical; a maior bacia hidrográfica do mundo; oito mil quilômetros de costa; uma floresta que absorverá boa parte do dióxido de carbono da atmosfera; mais de 600 milhões de hectares cultiváveis e potencial para três safras por ano?
Javé cofiou a longa barba e admitiu:
- Sim, confesso, tive a intenção de abençoar o Brasil de modo especial. Mas sei, por minha onisciência, que lá, por muitos anos, não será o Paraíso. Esperem só pra ver que tipo de políticos aquela gente haverá de eleger. O estrago, ao menos nos primeiros séculos após a chegada de Cabral, será muito grande: haverá miséria, desigualdade, discriminação, corrupção e violência. Crianças abandonadas andarão ameaçadoras pelas ruas e agricultores ficarão à beira de rodovias à espera de um pedaço de terra. Como não perco a esperança, pode ser que, um dia, os eleitores descubram que, ao votarem a favor da justiça social, o Brasil estará muito perto se vir a ser um Paraíso.
Frei Beto
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